A venda não presencial não é nova: a venda por catálogo teve início em 1896 pela Sears, Roebuck and Co em Chicago USA e com ela veio junto a necessidade da centralização do estoque, do fracionamento da entrega, da embalagem das mercadorias para transporte e despacho.
O comércio eletrônico introduziu o pedido e o pagamento online com data de entrega pré-estabelecida, competindo com outros canais de venda pela comodidade do consumidor, rapidez da entrega e ampliação da oferta. O tráfego, antes embutido no aluguel do ponto, tornou-se refém de altos gastos publicitários e da expansão ainda maior da oferta. Por sua vez, a conversão passou a ser garantida pela disponibilidade e qualidade integral dos serviços.
Embora, de modo geral, o comércio continue sendo uma atividade de mão de obra intensiva (baixo investimento em maquinaria), sua crescente dependência tecnológica vem modificando os processos de trabalho e, consequentemente, o perfil de seus trabalhadores e competências gerenciais. Este artigo aborda as modificações nos processos internos do comércio devido à intensificação tecnológica.
Como em todos os setores, a tecnologia tem sido o principal investimento como fator decisivo de diferenciação e instrumento essencial para aumentar a produtividade do trabalho (maior produção por unidade de tempo), principalmente pelo seu poder de controle dos processos produtivos.
Dois exemplos recentes ilustram a centralidade da tecnologia no comércio eletrônico e a decorrente concentração de mercado: a apropriação do conhecimento pela internalização do desenvolvimento para impedir sua disseminação (aquisição de software houses pelas grandes lojas virtuais) e o uso da tecnologia como mercadorias geradora de novas receitas (por ex.: markeplaces).
O aumento da produtividade, basicamente, visa a reduzir o volume de trabalho, acelerar o ritmo de trabalho e impessoalizar o processo produtivo, reduzindo a massa salarial com a finalidade de melhorar a margem de lucro em relação à concorrência.
Considerando a relação direta entre a participação da mão de obra e a oportunidade de ganho de produtividade por meio do investimento tecnológico, o artigo aborda os processos de trabalho fundamentais do e-commerce em ordem decrescente de participação da mão de obra: a logística interna, o atendimento aos clientes, o desenvolvimento de sistemas, o gerenciamento e, por fim, a logística externa (atividade fora do controle das lojas).
Logística interna
A expansão do comércio eletrônico implica o aumento da área de armazenagem como decorrência da relação entre o faturamento e o estoque médio, potencializado pelo aumento da variedade como derivação da atratividade do site. Não há exagero em afirmar a existência de depósitos com mais de 100.000 m2 de área de armazenagem coberta, abrigando mais de 500.000 SKUs e expedindo mais de 70.000 pedidos ao dia. Essa extensão e nível de atividade demandam milhares de operadores.
Abstraindo-se a automação, seguem algumas das atividades da logística interna que têm sido alvo da sistematização visando a reduzir a mão de obra e o tempo de execução: programação do agendamento de entrega respeitando a capacidade física do recebimento; uso de coletores em rede de rádio frequência eliminando a necessidade de reconhecimento visual da mercadoria a ser movimentada; recebimento às cegas; endereçamento automático; cross-docking, em caso de venda precedendo a compra; programação da expedição por diferentes critérios (agenda de expedição, disponibilidade de recursos etc.) com uso de diferentes métodos de separação segundo o perfil da demanda e natureza dos itens; minimização do percurso e maximização da quantidade de pedidos por “viagem” dos pickers; integração de conferência, faturamento e embalagem; conferência eletrônica do carregamento, entre outros. Como instrumentos de controle: controle em tempo real da capacidade de armazenagem por estrutura; controle operacional integral e em tempo real baseado em padrões; balanceamento dos recursos internos em função da carga de trabalho e inventário rotativo non-stop a garantir a acuracidade.
SAC
O atendimento aos clientes cresce numa proporção maior ou, pelo menos igual, às vendas. Há um nível de atendimento considerado normal (cancelamento por arrependimento, devolução imotivada, informações sobre ofertas, navegação e forma de pagamento, mudança de endereço etc.) e outro considerado como anormal (cancelamento por atraso de entrega, devoluções por problemas técnicos, item enviado discordante do pedido, falta de componentes, atraso de entrega, irregularidades no transporte etc.).
A primeira tentativa de limitar a quantidade de postos de atendimento foi por meio do aumento da jornada e intensificação do trabalho. Com a regulamentação desse tipo de trabalho coibindo as práticas anteriormente usadas, não restou alternativa às empresas senão a gradual incorporação das atividades até então executadas pelos operadores em sistemas computacionais.
Seguem alguns dos focos preferenciais dos esforços para a melhoria da produtividade: uso intensivo da URA; atendimento pelo site sem intervenção humana para operações mais formalizadas, tais como cancelamento e devolução sem troca; gerenciamento e controle integral dos atendimentos com base nos eventos e regras de decisão associadas, invocando a intervenção do operador somente quando a lógica correspondente à ação ainda não estiver formalizada; controle da carga de trabalho por canal de atendimento e balanceamento dos recursos; controle individualizado do tempo de cada atendimento e de cada operador; controle do tempo de resposta segundo padrões para avaliação individual dos operadores etc.
Tecnologia da Informação
Com a internalização do desenvolvimento de sistemas, o setor responsável pelo aumento da produtividade do trabalho da logística interna e do atendimento aos clientes também é alvo das mesmas forças concorrenciais que pressionam o aumento da produtividade do trabalho.
Não faltam motivos. Trata-se de mão de obra especializada, de alto custo e cada vez mais numerosa por se constituir no agente promotor do aumento da produtividade global e de inovação. Ademais, os sistemas, por concentrarem o pensamento acumulado, não devem depender de quem os projetou e desenvolveu; caso contrário, eles deixariam de ser propriedade da empresa. Assim, a impessoalização do processo de trabalho por meio da transferência do saber das pessoas para os sistemas deve ser absoluta.
Essa independência é naturalmente obtida pela própria metodologia de desenvolvimento de sistemas orientada por serviço e pelo uso de plataformas de gerenciamento por processo que implicam a divisão do trabalho por especialização e a minimização das peças autônomas programáveis, objetivando facilitar a manutenção e aumentar a capacidade de adaptação dos sistemas a mudanças e, com isso, afastando a maior parte dos desenvolvedores do conhecimento integral do sistema.
Normalmente, associa-se a TI apenas ao site. De fato, o site tem necessidade vital de alto desempenho, flexibilidade na gestão da política comercial, melhoria contínua em termos de navegação e busca. Porém, a TI gerencia, processa e controla todas as atividades do atendimento do pedido nas quais se encontram as oportunidades de ganho de produtividade e de melhoria da base de informações para a tomada de decisões.
Para melhor ilustrar a importância da TI por trás do site, basta lembrar as limitações enfrentadas pelas lojas que possuem o front e back-office de fornecedores diferentes – velocidade e precisão no processo de venda online exigem integração e, se a isso for adicionada a flexibilidade, o gerenciamento da mudança torna-se privilégio de poucos. Esse é um dos grandes dramas vividos pelos dirigentes das grandes lojas.
Atividades gerenciais
As atividades gerenciais, como sempre, têm sido as mais difíceis de serem afetadas pela sistematização dos processos. Como usuárias dos sumários das informações geradas, elas são caudatárias da melhoria informacional das atividades de linha, mas estão longe de se restringirem a isso. Entre muitas, duas questões podem ser destacadas como foco constante de interesse gerencial: o planejamento operacional e a gestão do capital de giro e, dentro deste, especialmente, a gestão do estoque.
O crescimento acelerado, a alta sensibilidade dos efeitos da política comercial e mercadológica e o aumento da abrangência funcional com a incorporação do transporte conferem ao planejamento do comércio eletrônico um papel muito mais crítico do que no varejo tradicional. Há muitos e recentes exemplos de desequilíbrio entre o volume de compras e a capacidade de armazenamento; vendas realizadas e a capacidade de expedição; os pedidos a serem expedidos e a capacidade de transporte; investimento em publicidade com a indisponibilidade de estoque por atraso de entrega dos fornecedores etc.
A forte sazonalidade das vendas há muito vem exigindo simuladores do processo integrado de trabalho, cujo desafio cresce na medida em que as atividades se tornam mais complexas em função das pressões concorrenciais, da incorporação de novos serviços (B2B, B2B2C e marketplace), da descentralização do estoque, entre outros.
A gestão de estoque tem sido vítima da inexorável tendência ao aumento da variedade de estoque – a inexistência da limitação física das lojas deu ampla liberdade para o vertiginoso crescimento da quantidade de itens ofertados. A má gestão do capital de giro nos estoques vem sendo ofuscada pelo crescimento das vendas (quando a rotação média tende a aumentar), porém, quando as vendas caem, especialmente os itens de maior valor unitário, os itens de baixa rotação teimam em aparecer – não é por outro motivo que as lojas virtuais associadas a redes físicas têm aproveitado esse canal para escoar mercadorias encalhadas. Algoritmos que possam substituir parte dos compradores na reposição de estoque ainda estão para serem aperfeiçoados.
Transporte
A independência geográfica do comércio eletrônico que tem destruído o monopólio territorial das lojas físicas tem seu preço: a dependência dos transportadores de encomendas. O transporte, em sua esmagadora maioria, está fora do controle das lojas virtuais, portanto, melhorias em termos de custo, prazo e qualidade dos serviços ficam fora da alçada delas, constituindo-se numa das razões pelas quais as transportadoras têm sido o alvo preferencial do e-commerce para justificar a baixa lucratividade – é quase regra atribuir erros aos outros, especialmente quando ausentes.
O volume de trabalho interno das lojas para a gestão da logística externa é relativamente pequeno: cadastramento das tabelas de preço das transportadoras, ajuste da política de escolha da transportadora pelo site, remessa da NFe às transportadoras por carregamento, processamento do rastreamento dos volumes fornecido pelas transportadoras, conexão com o SAC para processamento de excepcionalidades (avaria, roubo de carga, extravio e violação da embalagem, devoluções, cancelamentos após expedição etc.), acompanhamento do cumprimento dos prazos de entrega e auditoria de frete por meio do recebimentos dos conhecimentos. Como se nota, tais atividades são predominantemente atendidas por sistemas.
- Do lado das transportadoras, há pouca margem de manobra para o aumento da produtividade devido à própria natureza da operação.
- O consumo do capital imobilizado e dos insumos fixos e variáveis são atributos técnicos, portanto têm limites máximos pré-estabelecidos;
- O melhor aproveitamento da capacidade nominal de carga dos veículos é dificultado pelos seguintes fatores: redução da capacidade nominal de carga por conta das regulações municipais, restrição de horário de entrega aos destinatários residenciais, número máximo de entregas a limitar a carga, predominância de cargas leves e pressão pela rapidez da entrega;
- A minimização dos tempos de carga e descarga colide com o fracionamento da entrega, aumentando o tempo total da viagem;
- Velocidade média mais baixa devido ao trânsito urbano e à situação das estradas;
- Percursos curtos devido à concentração das entregas (68% das vendas na região Sudeste e 12% na região Sul, 12% no Nordeste, 5% Centro-Oeste e 3% no Norte);
A redução de custos administrativos, além de não ser tão significativa, tem sido prejudicada pela necessidade da maior abrangência de mercado (filial em todos os estados); por ter custos fixos administrativos mais elevados do que a média do setor devido à tecnologia de rastreamento como condição indispensável; e pela incapacidade de escolher o tipo de carga eliminando possíveis especializações.
A capacidade total de carga é pouco elástica em relação à demanda devido à dificuldade de investimento e à necessidade de terceirização para redespacho para a “última perna” de cargas destinadas a municípios com pouca demanda, constituindo-se numa transferência de parte do lucro;
Índice de extravio, roubo e avarias maiores do que em outros ramos do setor devido à natureza da carga (itens de consumo), às múltiplas unitizações e a entrega em regiões pouco seguras, impactando o custo do gerenciamento de risco e o custo operacional (a perda da carga implica o pagamento integral de seu valor quando a receita de frete equivale a 5% dele, assim, em média, um extravio implica a perda da receita de 20 entregas).
Observações finais
As oportunidades de ganho de produtividade estão diretamente associadas à relação entre os custos fixos e variáveis acima de uma determinada escala de produção. A logística interna e o atendimento aos clientes têm sido alvo de alto investimento em tecnologia (equivalente à mecanização para a indústria) para a redução de postos de trabalho, aceleração do ritmo de produção e precisão operacional, basicamente por terem custos fixos baixos, tendência que, cedo ou tarde, deve se estender ao desenvolvimento de sistemas e ao comercial.
O transporte, para diluir o alto investimento em veículos, tem que operar em alta escala em termos de toneladas transportadas por quilômetro numa determinada velocidade e com pouco tempo de interrupções. O transporte de encomendas (entregas com menos de 40 quilogramas, com predominância de frete-volume e destinadas a residências), mesmo bem gerido, tem um campo de ação muito reduzido para aumento da produtividade.
O e-commerce nasceu para quem está disposto a pagar o frete em troca da comodidade. A opção de aumentar as vendas em detrimento do varejo tradicional no mercado brasileiro obrigou as lojas virtuais a venderem com isenção de frete, pressionando as transportadoras e tornando deficitária a conta de frete. Por ser uma operação externa e a última a ser executada, o transporte sofre maior pressão e, para piorar o quadro, o setor não tem conseguido se impor às grandes lojas virtuais.
A redução do preço do transporte no e-commerce passa por mudanças na logística externa e no sistema de rastreamento: entregas em pontos referenciais (no caso de lojas virtuais associadas a redes físicas, entrega e devolução nas lojas físicas); roterização antes da separação com entrega direta do depósito ao consumidor nos grandes centros urbanos; descentralização dos depósitos com transferência feita por veículos com maior capacidade, pleno aproveitamento e maior distância.
Publicado originalmente na Revista E-Commerce Brasil