Todos sabem dos efeitos do desenvolvimento tecnológico na indústria: aumento da produtividade, redução de postos de trabalho e diversificação de mercadorias. O motor deste processo tem sido a disputa concorrencial, portanto, irrefreável. Na primeira parte do artigo falamos sobre a evolução do ganho de produtividade e perda da autonomia, as transformações do mercado com o advento do celular e sobre o modelo de economia compartilhada do Uber.
Leia a 1ª parte aqui: https://www.ecommercebrasil.com.br/artigos/uber-servicos-plataformas-tecnologicas-baseada-na-internet/
No artigo de hoje vamos falar sobre o avanço tecnológico e a indústria de software que possibilitaram o desenvolvimento dos controles de trabalho, a visão estrutural do “modelo de negócio” das agências e as vantagens e desvantagens de cada parte envolvida.
3. O instrumental técnico de controle do processo de trabalho (workflow)
Dois fatores básicos originaram o desenvolvimento do software de controle de processo.
O primeiro, deve-se ao avanço tecnológico, possibilitando o processamento em tempo real em larga escala; o aumento da capacidade de armazenamento de dados; a internet, pela possibilidade de interconexão entre o controle centralizado e diferentes dispositivos (fixos e móveis) dotados de poderes computacionais e a padronização de protocolos de comunicação.
O segundo, deve-se à concorrência dentro da indústria de software, reduzindo o custo de produção e aumentando a produtividade com objetivo dar maior flexibilidade aos produtos para que eles possam acompanhar as mudanças no ambiente de negócio de seus clientes. Em outros termos, aumentar o grau de generalidade de uso (abstração) dos produtos de software transferindo ao usuário o serviço de adequação do produto às suas necessidades por meio de parametrização.
Historicamente, os sistemas integrados empresariais (ERP) tinham por objetivo aglutinar, eliminar e dar precisão às funções administrativas, porém, o encadeamento das atividades permanecia dependente do conhecimento dos usuários, eles decidiam qual função deveria ser executada em cada situação, portanto, eram cientes das relações de dependência entre os programas do sistema.
A inclusão de uma camada de software responsável pela “orquestração” das atividades do processo de trabalho na construção de sistemas deu origem aos sistemas integrados orientados por processo que, além de aprofundar os ganhos anteriores, permitiram a livre programação da articulação entre as funções, reduzindo o poder de decisão dos usuários.
Esta mudança teve consequências organizacionais muito importantes. Entre elas, a ampliação da coordenação do trabalho administrativo, garantindo a efetividade do comando gerencial – o sistema convoca o usuário à realização da tarefa e monitora a realização e qualidade do trabalho realizado. Com isso passou a ser possível separar e concentrar o comando (definição do fluxo de trabalho) das funções (objeto da programação realizada pelos profissionais de TI), agora minimizadas ao máximo e fortemente reutilizadas.
A possibilidade de articular o sequenciamento do trabalho viabilizou novas formas de reprodução do capital nos serviços e no comércio, ameaçando as formas tradicionalmente praticadas e provocando fortes reações corporativas e tributárias, tais como: o comércio eletrônico permitindo o controle do fluxo do pedido do cliente, desde a sua captura até a entrega, incluindo a devolução; sistemas que controlam a demanda, oferta e tarifação, tais como os serviços de táxi, de hospedagem e viagens; plataforma de vendas virtuais articulando e controlando o processo de venda de milhares de pequenos lojistas; atendimento automático por meio de unidade de resposta audível (URA) diretamente conectada ao banco de dados etc.
O fundamento das novas plataformas é se apoderar do controle integral do processo e não, necessariamente da execução das atividades e muito menos do capital nelas envolvido. Esta antiga ideia, agora reformulada com uso de recursos tecnológicos, está no centro dos “novos negócios” baseados na internet.
Anexo a este texto, para os interessados em tecnologia, está descrita em detalhes a camada de software (Business Process Management ou BPM) responsável pela articulação e controle das atividades do processo. A finalidade é mostrar a analogia entre o controle virtual do processo de trabalho, agora generalizado, e o conhecido controle do shop floor (chão de fábrica) como forma de mostrar que os princípios são os mesmos.
4. Visão estrutural do “modelo de negócio” das agências
A agência, com sua plataforma de software como meio de produção, controla as duas pontas da relação comercial e se apropria de uma fração da renda obtida pelo trabalho e desgaste do capital dos associados.
Este modelo poderia ser confundido com outros que terceirizam a produção tal como ocorre na indústria de confecção e nas franquias. Em ambos os casos, as empresas que centralizam o processo produtivo também se expandem em conjunto com capitais que não lhes pertencem, porém, diferenciam-se por participarem diretamente do capital constante do associado através do fornecimento de insumos, propaganda, conhecimento tecnológico, garantias etc.
Neste novo modelo de reprodução do capital as agências têm contribui tão somente com o processamento da informação sem qualquer participação no capital investido pelo associado. Assim, a expansão de suas operações é realizada a custo praticamente zero.
5. Vantagens e desvantagens das partes envolvidas
5.1. Das Agências
Vantagens da agência
Controle do mercado | As agências deverão deter o controle do mercado, conhecendo e articulando a oferta global (disponibilidade e localização da frota) com a demanda (solicitação de veículo num e local por um usuário), fixar as tarifas e centralizar o recebimento. Sua receita será obtida pela intermediação de serviço por meio de uma taxa de comissão sobre o valor pago pelo usuário por ela calculado. |
Domínio do mercado sem capital | O patrimônio da agência resume-se à plataforma de software, sua construção, melhorias e operação, portanto, com custo marginal extremamente baixo. Em outros termos a expansão da frota custa-lhe muito pouco. Ela controla e explora o uso do capital físico de seus associados. |
Segurança da operação | O credenciamento do associado é crítico para a segurança da operação e se constitui num de seus maiores desafios. Um artifício para contornar esta questão fundamental é o convite aos convidados para avaliar o serviço do associado ao término da corrida através do próprio site da agência. |
Redução do tempo de espera | Um outro desafio importante para o sucesso da agência é a manutenção do tempo médio de espera entre limites toleráveis, dependente de algumas variáveis sob seu domínio (tamanho da frota, taxa de comissão, propaganda etc.) e fora de seu controle (congestionamentos, condições climáticas, legislação etc.). O tempo médio de espera deve ser inferior ao dos concorrentes. |
Tendência contracionista | Este mercado tende à concentração. Em outros termos, poucas agências terão grande poder de mercado. Ao defender-se desta constatação, as agências argumentam que há demanda reprimida pela restrição de oferta e que a desregulamentação do mercado a oferta, naturalmente, será equilibrada à demanda. |
5.2 Da sociedade
Vantagens
Postos de trabalho | A geração de empregos,18 o melhor aproveitamento do tempo dos usuários, qualidade de transporte pago, a redução da tarifa e o aumento do capital social (automóveis particulares passam a ser usados como capital) são os benefícios esperados.19 Há ressalvas a este benefício: foram abertos novos postos de trabalho para os novos motoristas com dedicação exclusiva, porém, este não é o caso daqueles que, já empregados, se associam às agências para obter renda complementar. |
Desvantagens
Tecnologia e desregulamenta | É típico do avanço tecnológico a colisão com regulações vigentes. Particularmente, a tecnologia de informação vem subvertendo os processos operacionais em vários setores, notadamente de serviços, principalmente pelo poder de processamento em tempo real, pela capacidade de rastrear o processo produtivo (monitoramento operacional) e automatizar regras de decisão. A regulação, lenta, adaptativa, é resultante de conflitos de interesses, estando sempre aquém das exigências das mudanças tecnológicas. |
A redução de veículos nas ruas? | A redução de veículos em trânsito nas ruas tem sido um dos benefícios sociais alardeados pelas agências. Levando ao limite e supondo que todos os proprietários de veículos particulares os deixassem sem uso em suas garagens e que, para se locomoverem, usassem somente a frota do serviço associada às agências e, ainda, que continuassem a fazer suas viagens sem compartilhamento. Com tais pressupostos, a quantidade de veículos em circulação nas ruas seria a mesma caso as agências inexistissem.
Em outros termos, admitindo o uso de máxima de eficiência de uma grande frota de automóveis de aluguel, ela substituiria a frota de automóveis de uso particular, apenas reduzindo a quantidade de veículos estacionados. Considerando que há certa ineficiência (os automóveis de aluguel rodam uma parte do tempo sem passageiros), o aumento da oferta de serviço de transporte de passageiros por automóvel deverá aumentar a quantidade de veículos em trânsito. Caso relaxássemos a hipótese de não compartilhamento, haveria uma redução da frota circulante se parte significativa dos motoristas profissionais não taxistas tivessem outro tipo de ocupação (sedentária) e que na ida ou na volta deles do trabalho se ocupassem com o serviço de transporte. |
Risco sistêmico | Uma pane no sistema de controle da agência, seja por erro de programação, danos no software causados pela invasão de um hacker, perda de sinal do provedor de internet etc., interrompe as operações.
Para se ter uma ideia deste risco, basta notar o cuidado que os desenvolvedores do 99Taxis tiveram na modelagem do pagamento e a contratação pela Uber Technologies de dois grandes pesquisadores de segurança de sistemas “após demonstrarem que poderiam “hackear” um modelo Jeep em movimento” e para “construir um programa de segurança de nível mundial no Uber”. |
O uso da tecnologia e a anomia | A questão fundamental não é a plataforma de software que beneficia tanto os associados quanto os usuários, mas a ausência do controle social do serviço prestado, da irresponsabilidade jurídica da agência em relação ao serviço prestado, a indefinição do relacionamento e ausência normatização jurídica do relacionamento associado-agência. |
Um argumento a favor da desregulamentação seria sua vantajosa substituição pela auto regulação de mercado com base na concorrência entre as agências, dando poder ao usuário. Há, pelo menos, dois contra-argumentos a serem considerados. O primeiro, certamente o número de agências será muito reduzido dada a inexorável tendência à oligopolização neste mercado, pois, para assegurar um tempo médio de espera razoável do usuário, há necessidade de uma frota numerosa, principalmente nos grandes centros urbanos (extensão territorial, trânsito pesado, acidentes frequentes etc.) e o crescimento em rede deste tipo de atividade: quanto maior for, maior ficará.
O segundo está associado à facilidade de entrada de associados, basta ter um veículo e carteira profissional. Com isso, a quantidade de prestadores de serviço deverá se ampliar, notadamente em situação de recessão econômica, consequentemente, a tarifa deve cair. A redução da tarifa reduz a renda disponível para investimento dos prestadores provocando o alongamento da vida útil do veículo e atraindo profissionais menos qualificados, visto que os mais capazes optam por atividades com melhor remuneração. Com isso, a qualidade do serviço decai. Uma consequência da perda da qualidade do serviço em função da redução da renda deve ser sua segmentação: usuários com melhor poder aquisitivo poderão escolher veículos e motoristas mais caros. |
5.3. Dos associados às agências
Vantagens
Fiscais | Os associados não taxistas estão dispensados de comprar ou alugar alvará de concessão de serviço da prefeitura, assim como de trabalhar por conta de um proprietário de alvará, portanto, libertos das regras disciplinares municipais que regem este tipo de serviço, as quais, em tese, deveriam equilibrar os interesses entre os taxistas e os usuários. |
Produtividade e complemento de renda | Com a ampliação do conhecimento da demanda pelos esforços mercadológicos da agência, espera-se que o associado aumente
a produtividade de uso do veículo (capital) do associado, portanto, de sua renda bruta. |
Flexibilidade | O associado tem o direito de comunicar à agência sua disponibilidade, com isso, ele tem a liberdade de determinar o tempo de sua jornada e das interrupções de seu trabalho, tal como os táxis. |
Não exclusividade | Tratando-se de um serviço privado, portanto, sem cláusula de
exclusividade com a agência (caso contrário, haveria o risco de vínculo empregatício), em tese, o associado pode usar seu capital para serviços seus próprios cliente e para mais de uma agência. Este escape, como veremos, será uma das possíveis reações ao domínio das agências e, ao mesmo tempo, objeto de avaliação de desempenho do associado. |
Desvantagens
Custos | Todos os custos operacionais correm por conta do associado, além do risco da indisponibilidade por acidente, doença etc., sem qualquer garantia trabalhista e sindical, reduzindo muito seu poder de pressão junto às agências, além disso, o associado não taxista não goza de benefícios fiscais. |
Renda | O usuário paga o serviço à agência e o repasse é feito em 48 h). Com isso, o associado perde o benefício a redução fiscal pela não declaração da renda recebida em espécie.
A tarifação é exclusivamente estabelecida pela agência, constituindo-se numa de suas variáveis mercadológicas mais importante em termos concorrenciais, estando diretamente associada ao aumento de sua participação de mercado, ao aumento de sua taxa de lucro, à política de incentivo aos associados por atingimento de metas (a plataforma tem recursos para personalizar as regras de tarifação em função do desempenho do associado) etc. A comissão paga pelo prestador de serviços gira em torno de 20% sobre o valor da corrida. Para ser ter uma ideia de quanto este valor é alto, basta citar que a comissão cobrada pelos marketplaces dos seus parceiros é, no máximo, de 15%, incluindo tráfego, análise de fraude, despesas financeiras e primeiro atendimento do pós-venda. |
Alternativas independentes | Com a concentração do mercado de agências e o nivelamento das normas de funcionamento, o associado, mesmo associando – se a mais de uma delas ao mesmo tempo, terá poucas alternativas independentes de trabalho. A alienação forçada do associado em relação à prospecção da demanda de serviço custa-lhe fração significativa de sua receita. |
Controle e transparência | A avaliação dos usuários (higiene, apresentação, conhecimento dos trajetos etc., todos previsto em lei) e o desempenho
operacional dos associados (por exemplo número de viagens, faturamento acumulado, tempo médio de disponibilidade etc.) são fundamentais para a agência ter o controle da qualidade dos serviços. Tais dados devem ser elaborados pela agência através de regras que não são necessariamente transparentes para os associados. |
Perda do conhecimento da demanda | Os associados e os usuários conhecem-se através da agência quando do início do serviço. Em tese, esta perda de vínculo reduz a possibilidade de fidelização (trabalho sem a intervenção da agência) regularizando a receita e evitando o pagamento da comissão. |
A contradição de interesses | Cada uma das agências obriga-se a ampliar sua frota no afã de aumentar sua massa de lucro e também para reduzir o tempo de
espera dos usuários. Esta compulsão se contradiz com os interesses dos associados pois gera a perda de de produtividade de cada um deles, afetando suas rendas. O aumento da frota agregada, além de determinado ponto, contraria os interesses dos associados. |
São conhecidas todas as funções dos app? | Como os associados não tem controle algum sobre o app que concordou em instalar em seu celular como condição necessária à
adesão ao programa, ele não tem condições de saber o que tais apps são capazes de fazer em termos de monitoramento de seu trabalho. Como proteger a privacidade de suas escolhas de trabalho? |
5.4. Dos usuários
Vantagens
Redução do tempo de espera | Com a maior oferta e contando com os serviços da agência sobre a disponibilidade e localização dos veículos, o tempo de espera do usuário de serviço deve diminuir, portanto, aumentando a utilidade de seu tempo. Além disso, o usuário poderá escolher o tipo de veículo e pagar por cartão de crédito. |
Redução da tarifa | Com a queda do lobby dos taxistas e o aumento da oferta, as tarifas devem ser reduzidas, muito embora com muita incerteza quanto à qualidade dos serviços. |
Desvantagens
A ausência de direitos | O serviço de táxi segue regras estabelecidas pelo pertinente órgão público de controle que define direitos e deveres para prestadores
e usuários do serviço. Não entraremos na discussão se isso funciona bem ou não, porém, o fato é que existem regras. Como o serviço privado não está fora de tais regras, o usuário, ao concordar com seu uso, assume todos os riscos. Por outro lado, mesmo que se queixe por meio da avaliação no site da agência, não tem segurança alguma de que suas reclamações serão consideradas. Por motivos legais, o processo de credenciamento dos associados é necessariamente superficial, a agência quer distância do risco de um selecionamento que se assemelhe a um processo admissional. Esta fragilidade na seleção é aumenta a insegurança do usuário de serviço. Pesa sobre a agência sua declarada independência jurídica em relação ao contrato informal de serviço prestador-usuário. Embora a agência tenha intermediado o contrato e cobrado por este serviço, isenta-se de qualquer responsabilidade. |
Tarifação discricionária | Assim como nas tarifas aéreas, a tabela de preço da agência depende da demanda. Quando a demanda superar a oferta além
de certo nível, a tarifa deverá subir, uma forma clássica de eliminar filas. Como decorrência, somente os que estão dispostos a pagar mais terão veículos disponíveis, neste sentido, o serviço é altamente seletivo. Como este proceder, sempre a demanda ajusta-se à oferta, haverá escassez de oferta somente por má gestão comercial. Além disso, nada indica a impossibilidade de haver discriminação da tarifa em função do local e grau de risco de destino ou da origem, neste caso, configurando-se uma como uma disfarçada recusa de prestação de serviço nas áreas economicamente carentes. O domínio da tarifação pela agência certamente será usado o obstáculo de entrada de concorrentes no mercado ou de exclusão concorrentes existentes, mesmo que seja sem prejuízo dos associados. |