Abrindo o auditório de Tecnologia e Inovação do Fórum E-Commerce Brasil 2024, Miguel Nicolelis foi o palestrante convidado para uma roda viva. Médico, neurocientista e professor, Nicolelis apresenta suas opiniões, insights e experiências de vida sob a perspectiva da evolução da inteligência artificial e do fomento das tecnologias no e-commerce.
Dando o tom da conversa, o professor comenta que em seu início na faculdade de medicina uma questão se sobressaia: não adianta registrar a atividade de um único neurônio, porque o cérebro humano tem milhões de neurônios funcionando simultaneamente. Em uma comparação mais tangível, Nicolelis afirma: “como posso estudar a floresta amazônica olhando para uma árvore de cada vez?”.
Voltando para seu passado, o convidado do Fórum ECBR ‘24 explica que passou 40 anos escutando um verdadeiro brainstorm – literalmente, amplificando os neurotransmissores do cérebro em grandes caixas de sons. A partir da coleta de dados e com o tempo, os pesquisadores passaram a serem capazes de prever com ⅓ de antecedência as reações motoras de animais e seres antes de sua realização – assim surgiu a interface cérebro máquina.
Nem inteligência nem artificial
Trazendo o e-commerce para o foco, cada dia mais, grandes volumes de dados – similares aos milhões de neurônios coletados em uma única tarde – têm sido processados com o auxílio da inteligência artificial. Nicolelis apresenta sua opinião sobre os desdobramentos e implicações do crescimento da IA nos negócios e especialmente no dia a dia dos seres humanos.
Há 200 anos, a neurociência começou a partir da frenologia, uma tentativa de compreender traços de personalidade e outras características mentais por meio de saliências do crânio. Porém, com o passar do anos, o cérebro passou a ser comparado com uma máquina; primeiro com máquinas a vapor, depois com o rádio e por fim – na Era da informação e do famoso Alan Turing – o cérebro virou sinônimo de computador.
Porém, Nicolelis apresenta uma visão diferente, defendendo que a inteligência artificial não pode ser nem considerada como uma inteligência e muito menos artificial. O professor explica que as inteligências são propriedades emergentes da matéria orgânica, pois os organismos em uma tentativa de maximizar suas chances de sobrevivência a desenvolveram (de maneira evolutiva). E a parte da artificialidade não estaria correta já que as inteligências não podem ser transformadas em códigos binários.
“Nós não somos sistemas digitais, todas as inteligências são analógicas”, resume o palestrante.
Ademais, outro ponto levantado na roda viva diz respeito aos dados hiper focados, resultados de uma cultura orientada a partir das inteligências artificiais. Segundo estudo da Nature, detalha o palestrante, se os sistemas generativos começarem desenvolverem uma necessidade muito grande de dados o fenômeno de data poisoning está fadado a acontecer. Isso significa que os modelos passarão a utilizar dados sintéticos para alimentar seus próprios bancos de dados e, portanto, depois de um tempo os modelos não serão mais compatíveis com a realidade.
“Estamos entrando em uma bolha de inteligência artificial. As pessoas aumentam o investimento em IA porque o lucro ainda não é claro, eles expandem o horizonte de investimento”, reflete o professor.
Cérebro digital e as capacidades cognitivas
O cérebro surgiu há 3 mil anos baseado no fundamentalismo do movimento. O palestrante explica que a mente humana é similar a um camaleão, com uma neuroplasticidade em um fluxo constante, ou seja, não se estagna. Porém, o cérebro não evoluiu para lidar com a perda da mobilidade, da atenção e nem com a conveniência completa – um dos princípios da sociedade moderna.
A falta de movimento (físico e intelectual) altera a estrutura cerebral e a partir de um certo momento algumas áreas do cérebro começam a atrofiar. Nessa equação, a única variável é em quanto tempo essa dinâmica, oposta a plasticidade cerebral, vai acontecer. O cérebro perde funções sem movimentação.
O professor apresenta um exemplo prático para explicitar a importância da agência intelectual – afetada, cada vez mais, pelo fenômeno da conveniência. Motoristas de táxis na Inglaterra devem passar por um exame de rotas e caminhos aos destinos sem o auxílio de tecnologias. Segundo o estudo, mencionado por Nicolelis, os antigos condutores apresentavam um hipocampo – responsável pela transformação de memórias instantâneas para memórias profundas – maior e hoje, os novos pilotos não vão desenvolver essas áreas do cérebro. Hoje, as capacidades cognitivas dos seres humanos estão em jogo.
“Nós só chegamos aqui, a espécie mais dominante do mundo, pelos atributos cognitivos e analógicos da nossa mente”, reitera Nicolelis.
O castelo de cartas
Abrindo uma nova discussão sobre a substituição do ser humano pela máquina, Nicolelis se aprofunda na maneira como a sociedade é construída. O professor explica que a maior parte dos sistemas do mundo é incomputável, ou seja, não é possível prever quando eles encerraram suas atividades. Com as máquinas, ao contrário, é possível antecipar quando seus sistemas podem parar.
Hoje, a inteligência artificial é uma ferramenta, “mas os seres humanos são obcecados por delegar funções narrativas próprias dos humanos”, reforça o palestrante.
Antigamente, um movimento filosófico surgiu tentando reproduzir o ser humano em uma máquina. Porém, o neurocientista explica que nunca – nunca – será possível desenvolver um algoritmo ou um robô que seja mais inteligente que o ser humano. E o motivo é mais simples do que parece: nenhum sistema X será capaz de criar e reproduzir um sistema com complexidade Y maior que X. Essencialmente isso significa que os seres só são capazes de criar até o seu limite da inteligência e complexidade.
Outro ponto, de igual importância, é o bom senso dos seres humanos. O palestrante defende que é impossível computar e automatizar o bom senso, a partir de um exemplo fica clara a significância e substituição dos humanos. Por um tempo, a discussão sobre incumbir a inteligência artificial das defesas nucleares dos países tomou forma, ou seja, a IA ficaria responsável por analisar estatísticas e movimentos políticos para detectar se o país iria sofrer um ataque e se prevenir atacando primeiro.
Nicolelis comenta, bem humorado, que no caso de alguns países isso não funcionaria, trazendo a final entre Argentina e Brasil como uma parábola para exemplificar. Em determinados casos como na disputa de futebol entre os países vizinhos, a inteligência artificial pode considerar uma agressão muito grave e ativar as defesas nucleares. E é exatamente a partir dessa situação que fica clara a importância do bom senso humano, é uma questão de compreensão além das capacidades estatísticas das máquinas.
Porém, além do bom senso é indispensável compreender que a sociedade moderna é construída sob abstrações do cérebro. Outro exemplo interessante é uma nota de vinte dólares, o professor questiona a plateia: quanto vale uma nota de vinte dólares? Quem acertar pode ficar com ela. A resposta parece óbvia – vinte dólares –, mas na verdade essa nota vale apenas o preço do papel e da tinta usada em sua impressão. Como sociedade, em algum momento, foi construído que esse papel representava um valor maior na realidade.
“A civilização humana é estruturada em um castelo de cartas recheado de abstrações”, resume Nicolelis.
Chatbots e a criatividade: uma dupla improvável
Voltando ao tópico das compras online, os chatbots são a nova ferramenta de auxílio aos consumidores. Nicolelis comenta que a estratégia em si é muito interessante, pois trabalha com uma injeção de dopamina rápida na mente dos consumidores e diz respeito ao prazer imediato.
Ao invés de um atendimento humano e provavelmente mais demorado, as inteligências artificiais estão assumindo um papel de facilitadoras. “A conveniência gera a ilusão de que existe algo mais poderoso do que nossa agência”, afirma Nicolelis.
Cada vez mais, os índices de produtividade estão matando as oportunidades de inovação, pois as pessoas não têm mais tempo para refletir. Um dos grandes problemas da generatividade é que as pessoas abdicam mais e mais da criatividade. O palestrante detalha que “no ano passado 12% de todos os artigos foram escritos pelo ChatGPT”.
O professor ainda apresenta uma reflexão sobre o futuro da capacidade humana em lidar com problemas e falhas nos sistemas chamados de inteligentes. “Em cada momento livre da sua vida, leia um livro”, esses são os indivíduos que compreenderão como os negócios funcionam e vão ser a chave para entender a lógica dos sistemas. As empresas que vão prosperar e sobreviver à sexta bolha da inteligência artificial, são as que acreditam e qualificam seus funcionários. Nenhuma tecnologia vai substituir os colaboradores que entendem do negócio.
“Se no futuro os sistemas foram somente ensinados com Mozart nunca mais teremos Beatles”, justifica o neurocientista.
Tecnologia não é o fim e sim o meio
De acordo com o professor, ainda existem custos invisíveis que precisam ser considerados quando o tema é inteligência artificial. “Hoje em dia, a inteligência artificial está consumindo 14% da energia do planeta, por conta das fazendas de servidores”, afirma o palestrante. A tecnologia desde os primórdios faz parte da neurobiologia dos seres humanos, mas é somente a partir da agência das pessoas no mundo criando tecnologias que os indivíduos podem ser capazes de manter a essência dos seres vivos.
“Nenhuma tecnologia vai solucionar os problemas da humanidade, a humanidade vai solucionar seus próprios problemas”, finaliza Miguel Nicolelis.