Texto originalmente publicado em 10/08/2018
Recentemente, tive a oportunidade de ler o texto “A Miopia do Marketing”, do professor de Harvard Theodore Levitt, que é um clássico e foi publicado em agosto de 1960. Ele discorre sobre como algumas empresas da época tiveram visão curta e acabaram reduzindo a longevidade e o potencial dos seus negócios.
Dentre vários exemplos apresentados, o texto cita a dificuldade das empresas ferroviárias, que, na época, estavam perdendo mercado com advento do crescimento de outras modalidades de transporte, como automóveis, caminhões e aviões.
A principal crítica do autor é que essas empresas se tornaram obsoletas por acreditarem que eram apenas “ferroviárias”, e não empresas de transporte.
Abaixo, uma pequena passagem direto da fonte do texto de Levitt:
“…As estradas de ferro não pararam de desenvolver-se porque se reduziu a necessidade de transporte de passageiros e carga. Isso aumentou. As ferrovias estão presentemente em dificuldades não porque essa necessidade passou a ser atendida por outros, mas sim porque não foi atendida pelas próprias estradas de ferro. Elas deixaram que outros lhes tirassem seus clientes por se considerarem empresas ferroviárias, em vez de companhias de transporte. A razão pela qual erraram na definição de seu ramo foi estarem com o espírito voltado para o setor ferroviário, e não para o setor de transportes; preocupavam-se com o produto em vez de se preocuparem com o cliente.”
É incrível como é possível atrelar essa mesma miopia ao mercado de comércio eletrônico no Brasil. O mercado padece da mesma doença, confundindo de forma errônea o canal com o modelo de negócios. Ao se restringirem como empresas que vendem apenas no digital, elas focam no canal e se esquecem de se preocupar com o cliente. Afinal, a jornada de compra do cliente em sua grande maioria é multicanal e, recordemos, o e-commerce sozinho não ultrapassa a fatia de 5% de todo o varejo.
Pra começar, e-commerce não é startup, é uma loja
A reflexão começa com o reconhecimento de um grande erro. Durante muito tempo, enxergamos aqui no Brasil empresas de comércio eletrônico como “startups”. Em 2012, em uma eleição das dez maiores startups do Brasil pela Revista Exame, duas eram essencialmente lojas virtuais: Dafiti e Baby.
Ah, e o erro não foi só nosso. A Business Insider também elencou a Dafiti como uma das startups mais sexys da América Latina em 2014, mas, no caso, parece que a publicação recebeu informação errada mesmo, pois chegou a comparar a Dafiti com a Amazon na matéria.
Entre 2009 e 2012, a grande maioria das supostas “startups de comércio eletrônico” foram anabolizadas por forte injeção de capital de risco e cresceram negligenciando a lógica mercantil do comércio, ignorando indicadores financeiros, como margem de contribuição, geração de caixa e lucro, e se apoiaram em métricas de vaidade, como aquisição de base e números de fãs em redes sociais, acreditando em um indicador chamado LTV (Lifetime Value) que nunca se comprovou verdadeiro para o setor (explicarei mais sobre LTV em seguida).
A coisa já dava sinais de que estava errada lá trás, em 2011, quando o Santander comprou parte da Greenvana e, no anúncio de aquisição, anunciou que a empresa tinha o maior número de fãs no Facebook, conforme trecho abaixo:
“…a página da empresa no Facebook atingiu resultados surpreendentes: é a maior do país entre todas as empresas de varejo, com mais de 240 mil fãs e a maior do mundo entre as empresas focadas em sustentabilidade, quando mensuradas por interações”.
Percebam a miopia: uma empresa de varejo foi “avaliada financeiramente” pelo número de fãs em sua rede social. O número de vendas e até mesmo margem de contribuição foram subjugados para a análise.
Por ora, já se passaram alguns anos, mas parte da miopia continua. Ainda em 2018, a Netshoes era a única empresa de varejo que destacava na sua apresentação aos investidores números como “membros registrados” e “usuários ativos”. Esses indicadores fazem bastante sentido para negócios digitais, como redes sociais (o Facebook recentemente teve uma grande queda nas suas ações após divulgar que está desacelerando o crescimento da base), mas não para empresas de varejo. Isso inclusive talvez ajude a explicar a queda das ações da companhia, que no IPO chegou a bater US$ 20,00 a ação e hoje patina na casa dos U$ 2,70, com desvalorização aproximada de 85%.
Exceto quando vende produtos digitais ou de terceiros (marketplace), e-commerce é essencialmente varejo. Não é um negócio digital, é um negócio físico, de oferta x procura de produtos físicos, com intensa mão de obra em atendimento e logística e com pouquíssima capacidade de escala.
Logo, devemos reclassificar o e-commerce como uma loja que está disponível apenas no canal digital. Empreendedores do comércio eletrônico normalmente acreditam que criaram “startups”, e eventualmente podem se autointitular como “founders”, “entrepreneurs” ou até mesmo “growth digital business”, mas no final são apenas “comerciantes” que compram produto por X e tentam vender por X+Y. E veja bem, não há nenhum demérito nisso, muito pelo contrário. Isso movimenta a economia com a criação de empregos e recolhe impostos da mesma forma, mas é bom lembrar que sob nenhuma circunstância há “disrupção” nesse negócio.
Há, contudo, uma demanda de aprendizado de novas competências no canal digital. Sem dúvida, disciplinas como aquisição de tráfego, marketing orientado a dados, automação de processos, atendimento ao cliente e logística são competências novas que um varejista que veio do mundo físico precisa desenvolver.
Quem entendeu está bem na frente
Curiosamente, as empresas que não sofreram da miopia do e-commerce foram as que vieram do varejo tradicional, que entenderam que sua vocação é vender para o cliente, e não restringiram o seu negócio apenas para “lojas físicas” ou no limite – “vender dentro de shoppings”.
E isso justifica a razão de elas terem “ganhado” o jogo em relação aos “pure-play” (empresas que vendem apenas no canal digital).
Empresas como Renner, ViaVarejo e Magazine Luiza estão conseguindo entregar continuamente lucro aos acionistas, mantendo o crescimento da operação, enquanto que as operações puramente online, que sofrem da miopia de acreditar que devem atender o seu cliente apenas no ambiente digital, estão tendo prejuízo e baixo crescimento.
Abaixo, um pequeno quadro comparando os resultados das empresas no primeiro trimestre de 2018:
Os fundos de venture capital que investiram em empresas de e-commerce não tiveram sucesso
As empresas de comércio eletrônico que cresceram alavancadas por fundos de investimento não deram certo. Elas acreditavam que o crescimento rápido, o incremento de base e a liderança de mercado, mesmo que às custas de uma queima irracional de caixa, iriam lhes conferir alguma vantagem no futuro, que nunca veio.
É possível contar na ponta dos dedos os e-commerces com esse perfil que continuam funcionando. A base desse equívoco foi fazer uma leitura errada sobre esse mercado e aproximar esses negócios muito mais de um negócio digital do que de um negócio varejista.
A falácia do Lifetime Value no e-commerce – leads não pagam conta
Em negócios de alta recorrência, como assinaturas (Wine, por exemplo) e SaaS , a conta de CAC (Custo de Aquisição de Cliente) e LTV (Lifetime Value) faz muito sentido, mas olhar para esses indicadores em varejo é cometer um autoengano.
Em operações de varejo, mesmo que o cliente esteja na base, o e-commerce precisa pagar para trazê-lo de volta a cada compra (via remarketing, Google Shopping etc.).
Durante muito tempo, padecendo da miopia, operações de comércio eletrônico acharam que poderiam “perder dinheiro” na primeira compra do cliente (CAC), acreditando que com uma boa experiência elas iriam comprar mais ao longo do tempo, e a recorrência de vendas (LTV) delas sem o custos de aquisição compensaria a “perda” da primeira compra.
Um exemplo para explicar a aberração desse comportamento é como se você fosse ao shopping, entrasse em uma loja, e falasse com a vendedora que queria 90% de desconto naquela compra, pedindo para a vendedora colocar aquele desconto na “no custo de aquisição de cliente do marketing”, que após você comprar o produto, talvez… quem sabe… você poderia ser “fidelizado” e voltaria depois para comprar mais vezes.
Se o e-commerce é uma loja, é preciso dominar os indicadores para ter êxito nesse negócio
Assumindo que o e-commerce não é um “produto digital”, e sim uma loja online, o fator crítico de sucesso de uma operação digital não está na usabilidade ou na “user experience” do site, mas na eficiência dos números relacionada à precificação, à logística e ao estoque, por exemplo.
Um e-commerce com usabilidade ruim e uma plataforma meia-boca, mas com boa precificação, logística e bom sortimento de produtos, incrivelmente consegue ser mais eficiente do que um e-commerce com excelente usabilidade, mas com precificação equivocada, logística ruim e estoque ineficiente.
Portanto, pare agora de ficar alterando o botão de compra do seu site para verde, ou enfiando selos de segurança e serviços de vitrines inteligentes dentro do seu site e comece a olhar para o seu estoque, sua precificação, sua política e gestão de frete. E, claro, para o seu atendimento.
E-commerces que abrem espaços físicos não estão “pivotando”, estão pingando colírio para sanar a miopia
Nos EUA, muitas marcas que eram essencialmente digitais já entenderam que devem atender os clientes em qualquer lugar. Grandes marcas como Warby Parker, Zappos e Bonobos já abriram dezenas de lojas físicas. Aqui no Brasil, também houve esse movimento, embora seja muito comum, ao citar a criação do novo canal, ver os próprios lojistas falarem que estão “pivotando” o modelo de negócios, quando, na verdade, estão curando a miopia. Afinal entenderam que o negócio deles não é “vender online”, mas simplesmente “vender”.
Conclusão
Permita-me misturar a minha conclusão com a conclusão do texto original de Theodore Levitt.
“…Em resumo, a organização precisa aprender a considerar sua função, não a produção de bens ou serviços, mas a aquisição de clientes, a realização de coisas que levarão as pessoas a querer trabalhar com ela…”
Portanto, a função principal de um e-commerce não é produzir um site ou criar uma landing page usando a última tecnologia do momento. Isso é apenas o meio, o fim é unicamente oferecer (e entregar) o produto certo, no preço correto, no canal certo, seja físico ou online, para o cliente final, com a maior conveniência e menor atrito possível.
Daí, refletimos, se o canal é o meio, convenhamos, não faz mais sentido usar o termo “comércio eletrônico”, mas simplesmente… comércio.
Vida longa a todos nós, “comerciantes” do Brasil.