Este artigo visa contribuir para a discussão das relações entre comércio e indústria à luz das transformações ocorridas nas atividades e competências comerciais por conta da expansão do varejo eletrônico e das empresas de tecnologia que o suportam.
Para precisar o tema, a introdução fixa alguns conceitos que abordam as funções essenciais da indústria e do comércio, pelos quais circula o capital em seu processo de valorização — da produção ao consumo final. A segunda parte trata dos fatores que tradicionalmente determinam a negociação comércio-indústria. Em seguida, o artigo discorre sobre as mudanças na relação comércio-indústria decorrente do desenvolvimento do comércio eletrônico e suas consequências, notadamente a possibilidade de venda direta da indústria ao consumidor.
Introdução
A função da indústria é produzir mercadorias, processando insumos com uso de bens de capital e mão de obra. A função do comércio é transformar mercadorias em dinheiro. Todo capitalista adianta seu capital (vulgarmente “pôr o dinheiro na frente”) com a finalidade de incrementá-lo. Em cada unidade produzida, o capital industrial adiantado é composto dos materiais, da mão de obra e de uma fração dos bens de capital usados no processo. Então, quanto maior for o lote de produção, menor será o capital investido por unidade produzida. O capital comercial adiantado, grosso modo, pode ser dividido em mercadorias (oferta aos consumidores), em logística e em esforço de venda. Então, quanto maior for o giro das mercadorias, menor será o capital comercial.
O ciclo de valorização do capital global compreende a produção industrial comprada pelo comércio e vendida ao consumidor e, com parte do dinheiro da venda, o comércio volta a comprar dos produtores, reiniciando o “circuito sistêmico das mercadorias”. Cada etapa da transferência da propriedade é mediada pelo mercado financeiro. A interrupção deste ciclo — quando mercadorias não são vendidas — implica a destruição do correspondente capital adiantado. Tal perda se deve à inadequação da oferta à demanda (rejeição do consumidor ou excesso de estoque), pela restrição de renda e/ou de crédito (consumidor deseja, mas não pode comprar).
A venda de mercadorias da indústria ao comércio
O capital desconhece preferências funcionais. Ele sempre converge para aplicações potencialmente mais lucrativas. Um exemplo dessa mobilidade do capital: a transformação de fabricantes de vestuário e de brinquedos em comerciantes na década de 1990, vendendo mercadorias produzidas na China. Nos poucos mercados com concorrência perfeita, a plena mobilidade do capital implica a equivalência das taxas de lucro entre a produção e a comercialização. No entanto, em mercados com concorrência imperfeita, fabricante e comerciante se digladiam, cada um deles armado com seu poder de mercado. Disso deriva analisar a negociação indústria-comércio sob a ótica da estrutura de mercado e de suas incessantes mudanças ativadas pelo desenvolvimento tecnológico.
Estrutura de mercado
Num determinado mercado industrial, quanto maior for a barreira a obstruir a entrada de novos produtores, maior tende a ser a vantagem da indústria frente ao comércio — um exemplo clássico é o mercado de telefonia celular, no qual poucas marcas bancam suas propagandas, dispensando parte das despesas na comercialização. O contrário é verdadeiro: quanto menor for a barreira de entrada (capital inicial relativamente baixo e tecnologia amplamente conhecida), maior será a vantagem do comércio frente à indústria — este é o caso do vestuário. Em síntese, a vantagem sempre pende para o lado do mercado mais concentrado: poucas indústrias e muitos compradores ou muitas indústrias e grandes compradores.
Posições oligopolistas são alçadas, principalmente, por fusões e aquisições que se entrelaçam com outras competências impeditivas à entrada de concorrentes e capazes de impor preços.
Na indústria, as principais competências para galgar posições de liderança são: a tecnologia (eletrônicos); a magnitude do capital inicial (petroquímica); o investimento na marca (produtos de limpeza e higiene), o capital para custear pesquisas (produtos farmacêuticos) etc.
No comércio, o poder de compra é a força determinante da pressão do comércio sobre a indústria. Obsessivamente perseguido, o poder de compra do comerciante advém da demanda agregada estimada de seus pontos de venda. Em outros termos, quanto maior for a quantidade comprada, maior será a redução do preço de aquisição. Neste caso, a concessão da indústria se justifica pela redução de suas despesas comerciais e pela necessidade de seus produtos estarem presentes no maior número possível de pontos de venda. Considerando que haja adequação da demanda à oferta, a aquisição de mercadorias com desconto implica o aumento da taxa de lucro (aumento do lucro e redução do capital adiantado pelo maior giro de estoque).
Desenvolvimento tecnológico
Fabricantes buscam compulsivamente reduzir custos, ciclo de produção e lote econômico, diminuindo o capital adiantado. Tal objetivo é alcançado por meio da automação (redução da participação relativa da mão de obra e melhoria de qualidade), da aceleração do fluxo do processo produtivo e de alterações na lista de materiais (substituição ou redução de ingredientes caros). Porém, o sucesso de um produtor individual tem data de validade: ele persiste até que as inovações se disseminem pela indústria. Neste intervalo, os pioneiros melhoram suas taxas de lucro (aumento do lucro e redução do capital adiantado), razão pela qual eles se protegem com patentes, acordos de confidencialidade etc.
O comércio foi profundamente modificado pela pesada introdução da tecnologia da informação, dotada de processamento em tempo real em larga escala, ilimitada capacidade de armazenamento de dados, uso comercial da internet, interconexão entre o controle centralizado e diferentes dispositivos (fixos e móveis) e padronização de protocolos de comunicação. A venda não presencial subverteu o processo tradicional de comercialização e o relacionamento com o consumidor. Alguns exemplos ilustram esse fato:
- Onipresença do ponto de venda;
- Captura de pedidos de compras sem intervenção humana;
- Análise instantânea de crédito para prevenir fraudes etc.
- Automação das regras de atendimento ao consumidor;
- Controle em tempo real do fluxo integral do atendimento do pedido do consumidor;
- Redução do custo de manutenção de estoques;
- Redução do capital inicial do varejo;
- Ampliação desmesurada da diversidade e variedade da oferta;
- Integração da cadeia de suprimentos;
- Aperfeiçoamento de sistemas de gestão e automação de armazém;
- Conhecimento em tempo real da oferta por meio de comparadores de preço,
- Acesso à intenção de compra dos consumidores.
A tecnologia aplicada ao comércio, concomitante à expansão dos pontos de venda, passou a ser uma competência indispensável ao aumento da participação de mercado, consequentemente do aumento do poder de compra.
Tecnologia: fator de mudança na relação indústria-comércio
A concorrência é a força motriz do desenvolvimento tecnológico das indústrias, no sentido de aumentar a variedade e a quantidade das mercadorias, direcionando-as para específicos segmentos de mercado e, paralelamente, reduzindo preços. Já para o comércio, as consequências são ambíguas: se, por um lado, atendem ao desejo de seus clientes, por outro, aumentam o estoque médio, a incerteza na estimativa da demanda, a complexidade logística e as áreas dos pontos de venda.
A intensificação tecnológica no comércio teve efeitos radicais, entre eles: estreitar a integração comércio-indústria, aumentar o giro do capital global (industrial e comercial), acelerar a concentração comercial e substituir parte das habilidades comerciais por automatismos.
Integração comércio-indústria
Seguem alguns exemplos do movimento em direção ao estreitamento da integração: (i) “cross-docking”, em que a venda ao consumidor precede a compra com a indústria custeando o estoque; (ii) venda de mercadorias de nicho com demanda geograficamente dispersa — alimentos processados destinados à recuperação da saúde; (iii) mercadorias somente fabricadas após a venda devido à incerteza da demanda e à escassez do capital de giro do fabricante — indústria de móveis; (iv) venda direta de mercadorias de alto consumo e conteúdo tecnológico por parte de marcas fortes, prescindindo de distribuidores — celulares.
O aumento do giro do capital global
Trata-se da consequência da redução do tempo em que o capital estagia como mercadoria. Em outros termos, a venda não presencial aumentou a rotação do estoque ao ampliar a abrangência territorial da oferta, reduziu ou eliminou estoque no ponto de venda, centralizando-o em centros de distribuição, e melhorou as condições para a liquidação de mercadorias “encalhadas”.
A aceleração da concentração comercial
Resulta do:
- Fortalecimento das lojas que ancoram marketplaces (plataforma bilateral para serviços e bens) — realmente, é difícil não lucrar com apropriação de 15% do valor da venda de mercadorias de terceiros (P3);
- Venda de espaço publicitário;
- Diluição de custos fixos e oferta de serviços logísticos pelo aumento do nível de atividades;
- Redução do risco comercial das vendas próprias (P1) pelo maior conhecimento da demanda;
- Gradual agregação de funções financeiras (financeirização dos marketplaces?);
- Internalização de parte dos serviços comprados de terceiros;
- Circunscrição das ofertas de todos os vendedores relativas a um item num espaço concorrencial, realçando o vendedor de preço mais baixo (salvo exceções, aquele com maior poder de compra) pela fusão da pesquisa de preço com a efetivação da compra;
- Integração de canais de venda – quanto maior for a quantidade de pontos de venda, maior será a vantagem da integração;
- Essencialidade da tecnologia da informação – como, na indústria, a tecnologia passou a ser um fator competitivo por excelência, fortemente dispendioso e cumulativo, logo, poucos serão capazes de investir continuamente para inovar ou acompanhar as inovações dos concorrentes.
A automação das funções comerciais e a venda direta
A incorporação de funções e habilidades comerciais em autômatos e a terceirização de serviços típicos da distribuição de mercadorias fortalecem a intermediação comercial e facilitam a venda direta.
A indústria não tem preparo funcional para a venda direta.
Seguem algumas das funções e competências carentes nas indústrias e que são habituais no comércio eletrônico:
- Gestão de armazém orientado para endereçamento automático na armazenagem, separação, conferência, embalagem e expedição de pequenos volumes, devidamente etiquetados e em conexão com transportadoras;
- Atendimento a consumidores em alto volume e em conformidade com a lei de defesa do consumidor;
- Competência em TI para manutenção do site de vendas e integração da venda online com o ERP;
- Inexperiência em marketing digital;
- Pouca sensibilidade na interpretação do comportamento do consumidor, dado que este conhecimento é mediado pelo comércio. A habilidade comercial em saber “o que comprar para bem vender” está sendo descartada com o uso de algoritmos.
Uma das formas de superar as carências seria por modificações nos ERPs que atendem as indústrias. De fato, os ERPs que as servem têm investido em melhorias nas funções descritas acima, porém, defrontam-se com dificuldades na incorporação de funcionalidades inerentes ao e-commerce: (i) elas não fizeram parte das premissas originais de desenvolvimento; (ii) são requeridas por uma parcela da base instalada; (iii) estão sujeitas a um ritmo de mudanças incompatível com a estratégia de venda em massa.
Esta brecha de mercado tem sido o alvo de empresas de desenvolvimento de aplicativos de abrangência restrita, caracterizados por se integrarem parametricamente aos ERPs, oferecendo sistemas de controle do fluxo de pedidos, de gestão de armazém, de rastreamento de entregas e de atendimento ao cliente. Porém, há resistência das empresas em operarem com múltiplos sistemas.
No entanto, todas as dificuldades da indústria para se habilitar à venda direta ao consumidor podem ser superadas pelo uso dos serviços oferecidos pelos marketplaces full service. Mantendo parte do seu estoque no armazém do marketplace, uma indústria pode vender para consumidores finais sem ter site, sem conexões com prestadores de serviços que precedem a compra (análise de fraude e pagamento); contar com acuracidade de estoque; ter rapidez na separação e expedição, rastreamento da entrega ou contar com pessoal e software de atendimento ao consumidor final.
Como se nota, é paradoxal que o próprio comércio eletrônico seja o agente facilitador da venda direta em detrimento do comércio de modo geral. Esta contradição é gerada pela natureza e sucesso do varejo virtual ao invadir a reserva territorial de mercado da loja física, ao desenvolver algoritmos para minimizar fraudes, ao estimular e simplificar pagamentos via internet, ao centralizar estoques, ao investir em complexos sistemas logísticos, ao contar com regras automatizadas de comercialização e reposição de estoque e ao se credenciar como conhecedor dos hábitos dos consumidores. Em síntese, a crescente diversidade dos fluxos de receita dos marketplaces vem impulsionando a venda direta da indústria ou marca própria.
Indústrias propensas à venda direta
O que move a indústria à venda direta é a apropriação de parte do que seria o lucro do comercial. Os extremos na relação de força indústria-comércio são os mais prováveis candidatos a eliminar o elo comercial.
Tem maior interesse na venda direta o setor industrial mais frágil, aquele que opera com margem estreita, portanto à mercê dos tradicionais canais de venda – eles só têm a ganhar, como, por exemplo, vestuário, editoras, cosméticos, alimentos e bebidas. Face a esses setores, o comércio tem mostrado sua força ao impor marcas próprias terceirizando a produção (exemplo: Qualitá do Pão de Açúcar) e na venda por intermédio de “revendedores domiciliares” (exemplo: Natura).
No outro extremo, estão os setores dotados de relativa imunidade às pressões dos canais de venda – eles tendem a ganhar ainda mais, como, por exemplo, eletrodomésticos e computadores (exemplos: Dell, Motorola, Brastemp).
Teoricamente, os setores industriais mais propensos à venda direta seriam os mercados concorrenciais caracterizados pela exclusividade de produtos (mão de obra intensiva), exigindo baixo investimento em bens de capital e tecnologia facilmente acessível e os mercados industriais fortemente oligopolizados de âmbito mundial caracterizados pelo alto conteúdo tecnológico e nível de produção (capital-intensivo), composto por empresas praticamente indiferentes às pressões de distribuidores.