Após o auge dos e-commerces de luxo durante a pandemia, empresas como Farfetch e MatchesFashion hoje enfrentam dificuldades para evitar a falência e manter sua relevância em um mercado altamente competitivo.
Rosh Mahtani, fundadora da renomada marca de joias Alighieri, está celebrando o 10º aniversário de sua empresa este ano. Suas peças artesanais banhadas a ouro, inspiradas na “Divina Comédia” de Dante, renderam-lhe o prêmio Queen Elizabeth II Award for British Design e solidificaram sua posição como uma das principais fornecedoras de e-commerce de luxo.
Durante a Paris Fashion Week do último mês, compradores visitaram seu showroom para selecionar estoque para a próxima temporada, incluindo a MatchesFashion, uma importante varejista de moda multimarcas responsável por uma significativa parcela da receita projetada da Alighieri. No entanto, surgiu um problema.
“Eles me deviam cerca de US$ 88 mil (R$ 443,7 mil) em faturas não pagas desde outubro e estavam pedindo descontos nessas faturas”, revelou Mahtani na semana passada.
Essa situação a deixou desconfortável, embora seja uma prática cada vez mais comum para marcas independentes como a dela. Ainda assim, ela não estava excessivamente preocupada.
Mercado de luxo e seus problemas
Dias depois, a MatchesFashion entrou em administração (o equivalente britânico à falência). Seu proprietário, o Frasers Group, que adquiriu a empresa em dezembro por cerca de US$ 66 milhões (mais de RS$ 331 milhões), afirmou que a operação não era mais comercialmente viável.
Da noite para o dia, quase metade da equipe foi demitida de uma empresa que, quando vendida para a Apax Partners em 2017, tinha uma avaliação de US$ 1 bilhão. Atualmente, 200 marcas têm dívidas pendentes e não podem acessar o estoque não vendido, enquanto uma base de clientes irritada luta para obter pedidos ou fazer devoluções pelo site.
A implosão da MatchesFashion é o mais recente revés para empresas que vendem produtos de luxo online. Uma vez consideradas promessas pelos investidores, muitas agora enfrentam dificuldades financeiras significativas.
Até a Farfetch enfrenta desafios
Em dezembro, a Farfetch — outrora uma potência do e-commerce para boutiques independentes e adorada pelos gigantes do luxo — viu suas ações despencarem. A empresa evitou a falência graças à uma aquisição de última hora pelo grupo de comércio eletrônico sul-coreano Coupang e a um empréstimo-ponte de US$ 500 milhões. Detalhe: em 2021, a Farfetch tinha uma avaliação de US$ 40 bilhões).
José Neves, fundador da Farfetch, renunciou ao cargo de CEO em fevereiro, em meio a uma série de processos judiciais movidos por acionistas. O futuro da Yoox Net-a-Porter também está incerto após um acordo fracassado entre a Richemont, seu controlador, e a Farfetch no ano passado.
A Richemont, que classificou a Net-a-Porter como “operações descontinuadas” em seu último relatório de lucros e registrou baixas contábeis bilionárias na empresa, afirmou que está em busca de um comprador e que não investirá mais dinheiro. Richemont, Farfetch e MatchesFashion optaram por não comentar sobre o assunto.
Booom dos e-commerces de luxo
O e-commerce de luxo foi elogiado na última década como uma maneira inteligente de fazer compras. No entanto, fatores como escolhas de gestão questionáveis, uma economia global instável e o aumento dos preços do luxo — incluindo grandes marcas investindo em suas próprias operações digitais — limitaram a capacidade dos varejistas de se destacarem em um mercado competitivo e lucrativo.
“A Matches está falida, a Farfetch gastou dinheiro em aquisições discutíveis e a Net-a-Porter está obsoleta. O sonho de se tornar um ‘Uber’ para a distribuição de luxo virou um pesadelo e se mostrou impossível de se realizar” Luca Solca, analista de luxo da Bernstein.
Após o boom da pandemia, muitas marcas de luxo ficaram com estoques excedentes e montanhas de produtos não vendidos, recorrendo a promoções e descontos agressivos. Isso levou marcas importantes a buscarem mais controle sobre seu e-commerce e distribuição.
Desaquecimento do luxo
Esses desafios coincidem com um abrandamento geral do mercado de luxo. Além disso, destacam a exposição de muitos varejistas online a consumidores aspiracionais de classe média, cujos gastos discricionários foram afetados pela inflação e pelos preços crescentes do luxo.
Alguns players tentaram expandir suas estratégias de negócios por meio de aquisições caras. A Farfetch, por exemplo, adquiriu a loja de luxo britânica Browns. Porém, o surgimento do mercado de revenda levou os clientes a comprar produtos de segunda mão pouco depois de estarem disponíveis pelo preço total.
“O custo do marketing digital bem-sucedido e a aquisição de clientes aumentou consideravelmente, e os investidores estão menos dispostos a arcar com esses custos”, explicou o consultor de luxo Robert Burke. Ele observou que algumas empresas, como a MyTheresa, tiveram melhor desempenho do que outras, mas alertou que os últimos três meses trouxeram um reset doloroso que estava se prolongando.
“Estamos prestes a ver uma grande mudança no comércio eletrônico de luxo — ou talvez seja mais apropriado dizer uma correção”, afirmou Burke. “No geral, as vendas online de moda de luxo aumentaram no ano passado. Este não é um mercado em declínio. O que está mudando é quem está garantindo fatias desse mercado”.
Venda direta de luxo
Várias marcas transferiram o máximo possível de suas operações para seus próprios sites diretos ao consumidor. Isso foi considerado uma sorte, já que compradores de algumas lojas online reduziram o número de marcas das quais estavam comprando.
Enquanto a Farfetch busca um comprador para a Browns, a Richemont busca um para a Net-a-Porter e os administradores procuram um salvador para a MatchesFashion, por exemplo. “Os designers costumavam querer que suas marcas fossem vendidas por uma multimarcas por conta do prestígio, que hoje já são uma peça menos importante do quebra-cabeça”, observou Mahtani.
Recentemente, ela tentou recuperar parte de seu estoque no depósito em Greater London. Embora não tenha tido sucesso, conseguiu obter os detalhes de contato direto dos administradores — ou seja, um passo na direção certa.
“Eu tive que fazer algo, pois era ultrajante ver estoque que sei que eles ainda não me pagaram sendo vendido em seu e-commerce. Vou ficar bem, mas nenhuma empresa perde dinheiro como eu perdi sem sentir isso”, finalizou.
Fonte: O Globo