Mesmo antes da pandemia, o consumidor já estava começando a se acostumar com um padrão de consumo e atendimento acima da média para o varejo brasileiro, principalmente por causa dos marketplaces.
Os marketplaces conseguem disputar preços melhores, trabalham com eficiência de fretes e oferecem vantagens competitivas tanto para lojistas quanto para consumidores. Dois anos depois do “agora tudo é online”, quem compra no digital hoje espera a mesma agilidade e qualidade de qualquer e-commerce, seja ele grande ou pequeno. Mas será que isso é viável?
Optar por vender por conta própria pode ser uma opção ou até necessidade do lojista, mas é preciso encarar com seriedade essa questão. Um dos pontos levantados pelos especialistas do Comitê de Gestão e Operação, realizado pelo E-Commerce Brasil em maio, é que para vender “sozinho”, o lojista precisa buscar conexões inteligentes e acessíveis do mercado, justamente para transpor as barreiras da gestão e das entregas cada vez mais rápidas (e caras). E fica o questionamento: como disponibilizar a melhor experiência de maneira sustentável e sem prejudicar as operações?
Acompanhe um trecho do relatório elaborado pelo comitê, que é composto pelas empresas Adtail, Baselinker, Bis2Bis, Biso Digital, Bling, Ideris, Intelipost, Kangu, liveSEO, Olist, RD Marketplace, Validity e wap.store.
Integração sistêmica
Para Ricardo Cavalcanti de Araújo, Sócio-fundador e Co-CEO da Kangu, o mercado eletrônico ainda está no início e apresenta potencial para grande crescimento no Brasil. Um dos gargalos que impactam diretamente este crescimento, no entanto, é a integração sistêmica, já que muitas lojas online ainda não dispõem de meios para potencializar a capacidade de integração.
“O lojista já passa pela grande dificuldade de começar ou digitalizar um negócio e depois ainda empaca na área de tecnologia e de inovação”, argumenta. Uma das possíveis soluções para este problema é estar aberto a parcerias e correr atrás das conexões que permitam agilizar os processos de integração.
“Cada empresa está em uma etapa, mas quem perder o momento de se disponibilizar para estar integrado, vai perder o bonde”, defende Araújo. Isso porque, segundo ele, independente da etapa de digitalização ou do tamanho da empresa, o e-commerce no Brasil sofre com problemas estruturais.
“Grandes empresas apresentam ainda processos ‘jurássicos’ e não há uma unidade no modelo de desenvolvimento logístico”, ele explica. Isso porque o enrijecimento dos processos, atrelados às dificuldades de gerir grandes estoques e operações, vai na contramão do crescimento. Algumas empresas pequenas já iniciam a digitalização e os processos de integração sem esse tipo de embargo, embora enfrentem outras dificuldades.
O foco, segundo ele, é criar um formato de inovação e integração, pois muitas companhias não veem as mudanças necessárias nos setores de operação como prioridade para o crescimento. Quando mais companhias usarem os mesmos processos, os operadores logísticos vão conseguir trabalhar com mais agilidade.
Logística: a realidade brasileira
Cavalcanti fala também sobre a construção de um menu de frete para o e-commerce que faça sentido tanto para o lojista quanto para o consumidor. Ele diz que muitas empresas hoje buscam oferecer alternativas que sigam tendências do mercado internacional sem se atentar à sustentabilidade da operação, já que o frete se torna cada vez mais trabalhoso e caro. Além disso, a arquitetura dos menus de frete muitas vezes não compreendem a estrutura logística disponível ou o potencial de venda da loja.
“Você só pode desenhar algum processo se souber o que já tem”, ele argumenta, referindo-se à necessidade de analisar as estruturas já existentes para a loja e transportadoras, bem como entender o sistema de entregas brasileiro.
“As estruturas rodoviárias brasileiras e arquitetura urbana dos principais polos consumidores do comércio eletrônico não foram projetadas para o mundo que vivemos hoje. Foram pensadas em abastecimento físico, que moldaram muitas rodovias e avenidas”, justifica Araújo.
A mudança de entrega entre lojas e residências é um grande desafio para a logística justamente pela lenta adaptação das cidades. O executivo acredita que essa adaptação ainda levará tempo para fazer parte da realidade brasileira e atingir um patamar que permita realizar entregas rápidas sem comprometer a saúde financeira da operação.
Essa adaptação depende da criação de espaços de distribuição, dark stores, vias de acesso e mudanças no trânsito de veículos e pessoas.
De acordo com Araújo, “o mais rápido nem sempre é o necessário. Existe a possibilidade de estarmos forçando um sistema de entrega rápida que agride a cidade, que não se adequa às condições urbanas e sociais brasileiras”.
Como parte da solução, ele entende que as empresas grandes têm a oportunidade de investir em novos modelos logísticos, menos idealizados, mas que levem em consideração o cenário real do Brasil. Modelos que envolvam o compartilhamento e a troca de informações beneficiariam não só as companhias como o mercado como um todo.
Para as pequenas empresas, o modelo mais acessível continua sendo os Correios. Segundo o executivo, é uma estrutura que precisa ser preservada e vista com mais atenção, por ser a única ainda acessível para a maior parte dos varejistas e que tem a maior capacidade de entrega do País.
Novos modelos de entrega
Um dos caminhos para que a logística seja mais eficiente e integrada às operações, segundo os executivos do comitê, é explorar novas formas de entrega e distribuição.
Entre eles, o ativamento de lojas como ponto de retirada ou como pontos logísticos. Como as lojas já são pontos específicos da cidade preparados para o recebimento de mercadoria e comportam, muitas vezes, a chegada de caminhões de entrega com mais facilidade do que as residências, elas podem funcionar como pequenos estoques do e-commerce, prontas para a entrega de itens específicos que precisam de uma vazão mais rápida ou com maior demanda do mercado.
Este é um dos exemplos de adaptação com baixo custo de transformação para a empresa, mas que precisa de um treinamento: os funcionários além de receber e vender as mercadorias precisam ser orientados também sobre a melhor forma de despachar os produtos quando uma compra online for solicitada.
Outro modelo que o e-commerce já oferece, mas ainda apresenta grande potencial de crescimento é a retirada no estabelecimento físico.
Mesmo que a entrega rápida não seja a realidade da maior parte dos lojistas brasileiros, sobretudo os que não usam as soluções de fulfillment dos marketplaces, ou optam por vender por conta própria, essa modalidade se tornou uma necessidade dos consumidores, principalmente durante a pandemia.
Como uma forma de cativar os consumidores, muitas empresas passaram a oferecer benefícios que se tornaram insustentáveis a longo prazo, o que demanda mudanças urgentes nas estruturas e estratégias de entrega.
Maturidade logística
Sérgio Simões, Enterprise Sales Manager da Intelipost, aponta que “a régua do jogo subiu e criou-se uma demanda de entregas rápidas durante a pandemia”. Para mantê-la sem comprometer o negócio, ele recomenda que os lojistas pensem na relevância da omnicanalidade e na capilaridade das lojas físicas como auxiliar imprescindível nas entregas rápidas.
Esse tipo de solução, no entanto, adequa-se somente às lojas grandes e médias que dispõem de mais recursos e de espaços físicos na cidade. Para as pequenas, uma das soluções é o PUDO (Pick Up & Drop Off) no qual o lojista consegue aproveitar a estrutura de terceiros ou armários inteligentes para que os consumidores façam a retirada de produtos.
“A maturidade logística hoje ainda é baixa, não só para o pequeno player, mas para o grande também”, ele argumenta.
Simões fala também sobre a importância de se comunicar melhor com os consumidores e de apresentar soluções mais claras e objetivas. Cada segundo a mais no checkout aumenta as chances de desistência da compra. Então, oferecer opções mais inteligentes de frete pode ajudar na conversão. Se os preços e prazos forem controversos na hora de efetuar a compra, o consumidor desistirá.
A clareza e a comunicação mais eficiente também fazem parte desse processo, pois ajudam a controlar a ansiedade do cliente e fazê-lo tomar a decisão que melhor combina com sua necessidade.
Ter essa clareza ajuda inclusive na recompra e retenção/fidelização de clientes, pois faz parte da experiência do consumidor e credibilidade da companhia. “E-commerce não é só vender, é também gerar informação para o mercado”, ele conclui.
Logística reversa
Araújo defende que uma das maiores dores das operações logísticas ainda está na troca e devoluções de mercadorias, de maneira que a cadeia precisa se organizar para minimizar ao máximo os pedidos de troca. “Não existe nenhuma empresa de logística no mundo que ganhe fazendo devolução”, ele explica, além de ser algo que tende a ser também negativo para o consumidor em termos de experiência.
Em muitos casos, dependendo do valor do produto ou do custo operacional para realizar uma troca, a empresa opta por somente fazer uma nova entrega, sem retirar o produto que deveria ser trocado. Mas isso também é um problema: “O brasileiro nem sempre sabe cobrar seus direitos como cidadão, mas sabe muito bem cobrar seus direitos de consumidor”, argumenta o executivo. Um atendimento mal realizado pode gerar consequências perigosas para o negócio quando o cliente decide agir contra a empresa.
Sem contar que a maior parte das operações de logística reversa hoje ainda ser realizada pelos Correios, e não pelas transportadoras privadas. Dentro dessa prerrogativa, ele volta a citar a importância de elaborar um menu de fretes condizente com a realidade: ele nem sempre precisa ser o mais ágil ou disruptivo, mas deve sempre tentar sanar as dores que já estão presentes no mercado.
Atenção a quem trabalha na ponta
Um dos últimos pontos defendidos por Araújo foi que nem sempre as estratégias levam em consideração os trabalhadores envolvidos nos processos de entrega. Se as cidades brasileiras ainda não estão, em sua maioria, adaptadas aos processos de entrega ultra-rápida, por questões estruturais e culturais, as pessoas que trabalham realizando as entregas diariamente em contato com o consumidor não podem ser penalizadas.
“Muitas empresas acabam tendo prejuízos com entregas atrasadas por não considerarem a capacidade humanamente possível de execução dos projetos pelo lado do entregador. Dias de chuva, greves, manifestações, eventos sociais, acidentes ou qualquer outro imprevisto podem acarretar em atrasos que não foram previstos e o entregador muitas vezes é culpabilizado por algo que foge de seu controle”.
A reflexão proposta por Araújo é que as empresas revejam as estratégias e assessorem melhor todas as etapas humanas da entrega, garantindo as condições de trabalho adequadas e uma comunicação aberta para a uma adequação constante.
“É preciso acalmar a logística e entender que entregar 40 pacotes com qualidade é melhor do que entregar 50 com mentira, retorno, reversa e desgaste”.
A Diretora de Conteúdo do E-Commerce Brasil, Vivianne Vilela, completou que “produtividade tem a ver com não trabalhar com fome” e que é importante considerar com mais atenção a jornada de trabalho dos entregadores para ter uma logística mais eficiente.
Oportunidades no Brasil
Um dos consensos entre os integrantes do comitê foi que o Brasil, apesar de suas particularidades e diferenciais adaptativos no e-commerce, é um ambiente muito propício à inovação ao investimento, com oportunidades que deveriam receber mais atenção do mercado.
Renato Kialka, Country Manager da BaseLinker Brasil, percebe que muitas das APIs (Application Programming Interface) – que são, de maneira simplificada: a conexão entre programas e plataformas – ainda são deficitárias. “O Brasil é um ‘continente’ com várias realidades diferentes, com cidades grandes cujo cenário é mais evoluído, mas temos também outras geografias com necessidades distintas ainda não atendidas”, ela explica.
Por integrar uma empresa polonesa, Kialka comentou que existem alguns passos necessários para as empresas brasileiras atingirem um nível melhor de excelência ao se espelharem nos europeus. Muitas empresas de fora são capazes de ver essas oportunidades onde as nacionais não veem.
Uma das principais vantagens do Brasil é a hiper conectividade das pessoas e sua adaptação rápida às novas tecnologias. “A quebra de estoque, por exemplo, tem muito a ver com tecnologia, com sincronização de informações”, associa. Algumas manobras podem ser empregadas simplesmente resolvendo a questão da comunicação.
“Visibilidade ajuda a ter confiança na jornada de compra. Nem sempre o consumidor precisa do produto em um dia, mas mesmo assim ele quer saber quando vai chegar”, completa. Mesmo que a empresa ainda não tenha a capacidade de entregar de forma rápida, ou nem mesmo tenha esse interesse, é possível conquistar uma experiência mais agradável simplesmente se conectando melhor com o consumidor e o deixando informado de todas as etapas de deslocamento do produto.
Para conferir o relatório completo, clique aqui.
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