Devido à expansão do uso de aplicativos para chamada de táxi, diariamente a mídia veicula notícias referentes à relação que taxistas possuem este tipo de inovação, como o uso desse tipo de tecnologia afeta o setor e eventuais conflitos com startups desse setor. Ocorre que, em segundo plano, reside uma questão que ainda não foi explorada e que é um assunto fundamental por detrás das recentes discussões sobre a interação entre taxistas, passageiros e aplicativos de táxi: a responsabilidade das startups detentoras dessas plataformas tecnológicas nas relações com os taxistas e passageiros.
Os aplicativos de táxi são parte de um segmento no mercado das startups que se cunhou de marketplace. Um marketplace consiste no uso de uma plataforma tecnológica que serve como interface entre duas pontas – uma consumidora e outra prestadora de serviços. Dessa maneira, um marketplace tem como atividade preponderante e essência unir prestadores de serviço a consumidores. Trata-se de um serviço de aproximação prestado pela empresa proprietária desse tipo de plataforma. No caso específico dos aplicativos de táxi, os taxistas figuram como prestadores de serviço e os passageiros, por sua vez, como consumidores. Ambos são usuários dos aplicativos.
Em primeiro lugar, como delimitado acima, é imprescindível notar que o serviço efetivamente prestado pelas empresas de tecnologia deste setor é o de aproximar a demanda e a oferta de serviços por meio de um aplicativo. Esse serviço prestado pelas empresas de tecnologia é geralmente objeto de um contrato celebrado com os usuários (tanto taxistas, quanto passageiros), denominado “Termos e Condições de Uso”. Este contrato será responsável por regular a relação dos usuários com a empresa proprietária do aplicativo.
Em segundo lugar, vale relembrar como o serviço era prestado antes do surgimento desses aplicativos de táxi. Tratava-se puramente de um contrato de transporte, celebrado entre um passageiro, que desejava se deslocar de um ponto A para um ponto B, com o taxista, que deveria possuir todas as licenças e autorizações necessárias para prestar este tipo de serviço. Atualmente, o mercado de táxis funciona da mesma maneira, exceto pelo fato de que foi adicionado um intermediário para facilitar a obtenção das corridas. Fato é que hoje um passageiro não precisa abanar os braços, gritar e assobiar para obter um táxi – basta um simples toque em um botão.
Apesar da lógica do serviço de táxi permanecer a mesma de outrora, alguns agentes de mercado passaram a interpretar de maneira equivocada que os aplicativos de táxi, meros marketplaces, deveriam se responsabilizar por questões relativas ao contrato de transporte celebrado exclusivamente entre passageiro e taxista, do qual os aplicativos de táxi sequer são parte. Não são raros os casos de demandas judiciais contra as startups detentoras deste tipo de plataforma no sentido de tentar responsabilizá-las por xingamentos e discussões entre taxistas e passageiros, problemas de pagamento do passageiro para o taxista (os denominados chargebacks, gerados por uma falta de reconhecimento por parte da cadeia bancária e do passageiro de uma transação efetuada por meio de cartão de crédito), esquecimento de objetos no interior dos veículos de táxi, dentre outros problemas.
Ocorre que antes do surgimento desses marketplaces, este tipo de problema sempre foi resolvido entre passageiro e taxista e, eventualmente, com a cooperativa à qual o taxista é filiado. No entanto, com o crescente uso de aplicativos de táxi, equivocadamente, algumas pessoas passaram a entender que as empresas proprietárias dos aplicativos deveriam se responsabilizar por fatos ocorridos entre passageiros e taxistas. Ora, o absurdo é tão grande quanto o de um consumidor querer processar uma revista por ter anunciado em suas páginas uma pizzaria que lhe entregou uma pizza estragada.
Apesar dessas tentativas, o Judiciário brasileiro criou precedentes que julgam corretamente a matéria. Nesse sentido, alguns trechos das sentenças proferidas em casos dessa natureza demonstram o lugar em que o aplicativo de táxi se coloca nesta relação:
“(…) parece inapropriado responsabilizar a ré por ato perpetrado exclusivamente pelo taxista que se caracterizaria como um fato do produto, como é o caso dos autos, em que o taxista supostamente se recusa a devolver um celular esquecido no veículo. Tal situação é análoga a de sites de busca de melhores ofertas (…)” (Processo 1003055-08.2015.8.26.0004, Juizado Especial Cível, São Paulo)
“(…) o serviço que oferta em mercado é a de intermediação na contratação do serviço de transporte terrestre, não podendo responder por ato que se encontra fora do serviço que presta. (…) A existência de prévio cadastro de usuários e taxistas não desnatura o serviço de aproximação, muito menos a possibilidade de excluir estes em caso de inadequação da utilização, tal como o fez com o taxista que proferiu ofensas à recorrida. Não responde a recorrente por ato que não está dentro do serviço que presta/disponibiliza no mercado de consumo. A recorrente é mera intermediadora e, como tal, responde por eventuais vícios na aproximação/contratação entre consumidor e taxista, este sim, prestador do serviço de transporte. Inexiste responsabilidade da intermediadora por fato do produto ocorrido no serviço de transporte, já que trata-se de fato alheio ao serviço que presta e sobre qual não possui qualquer gerência.” (Processo 0005213-17.2015.8.26.0016, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo)
“A ré comprovou que o autor não recebeu o valor pago pela corrida por ter ocorrido a operação denominada “chargeback”. Isto é, a transação foi cancelada pelo não reconhecimento pelo titular do cartão de crédito da operação. Afirma, ainda, que o percurso da corrida foi de menos de 1 km e o valor da corrida foi desproporcional (R$165,00), o que gera a suspeita de fraude. Afirma ainda que tentou contatar o autor diversas vezes, sem êxito. Diante da suspeita de fraude, a operação denominada “chargeback” foi efetuada quando da solicitação do titular do cartão de crédito. Portanto, a ré se desincumbiu do ônus que lhe cabia de provar fato impeditivo, modificativo e extintivo do direito do autor (…)” (Processo 023216674.2015.8.19.0001, Juizado Especial Cível, Rio de Janeiro)
Dessa maneira, fica claro o papel dos aplicativos no mercado de táxi, meros marketplaces. Por esta razão são responsáveis apenas pelos serviços que efetivamente prestam, qual seja, o de aproximação entre passageiros e taxistas. Ou seja, não fazem parte da relação contratual estabelecida entre o passageiro e o taxista.
O surgimento de novas tecnologias resulta geralmente em confusão e falta de compreensão da sua forma de funcionamento e aplicação, o que gera problemas como os mencionados acima. Assim, torna-se imprescindível que todos os envolvidos neste tipo de mercado discutam e promovam a disseminação da informação para que tecnologias criadas para facilitar e beneficiar as pessoas não se tornem inviáveis por conta de equívocos.