A Covid-19 dispersou os agrupamentos humanos. Ela fechou escolas, faculdades, igrejas e templos religiosos, assim como acabou com as festas. O comércio, uma das principais atividades econômicas dos centros urbanos, foi abreviado pela doença.
As cidades esvaziaram-se e esse vazio se refletiu no bolso de grande parte dos brasileiros que, impedidos de trabalhar, se viram sem renda alguma. Com o Estado não foi diferente: proibido de agregar receita por meio de atividades comerciais, sua única “fonte de renda” está na arrecadação de tributos, que hoje diminuiu muito.
Os mais atingidos, sem dúvida, foram os estados e os municípios. Afinal, comércio fechado não faz nascer o fato gerador de impostos de competência estadual e municipal.
Um dos principais impostos — talvez o mais importante deles em arrecadação — é o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), de competência estadual, previsto no art. 155, II, CRFB/1988.
O fato gerador do ICMS compreende as operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior e sua base de cálculo é o valor da operação ou preço do serviço.
É importante salientar que o ICMS sempre foi recolhido pelos contribuintes no comércio eletrônico. A sua instituição é relativamente recente, como o próprio e-commerce. Originalmente, o ICMS era recolhido apenas para o estado remetente da mercadoria — o estado a que se destinava a entrega do produto ou serviço não arrecadava nada. Tal formato de recolhimento agradava aos estados que detinham a maioria das sedes dos sites de venda, a exemplo do Rio de Janeiro e São Paulo, em detrimento dos demais.
Visando alterar essa realidade e promover uma distribuição mais equânime do imposto, os outros estados da federação se reuniram para criar o Protocolo n. 21/2011, CONFAZ. Tal protocolo, todavia, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 4.628 e 4.713. Nesse caso, sob o argumento de que o protocolo fazia espécie de autotutela das receitas oriundas do imposto, assunto que não podia ser tratado por esse tipo de norma.
Ademais, foi criada uma modalidade de substituição tributária sem previsão legal, alterando o art. 155 da CRFB/1988 pela forma errada (era preciso aguardar emenda ou norma com força de emenda constitucional para essa finalidade).
Após esse imbróglio, foi editado o Convênio n. 93/2015 do CONFAZ — que alterou, mais uma vez, a maneira como é recolhido o ICMS no e-commerce. Em verdade, o referido convênio veio para amenizar a “Guerra Fiscal” ocorrida entre os estados da federação. Todavia, aumentou consideravelmente a burocracia do recolhimento para os contribuintes e impactou fortemente as empresas do comércio eletrônico.
Por esse convênio, o recolhimento do ICMS atualmente ficou assim: o lojista do e-commerce gera a Nota Fiscal do produto vendido e toma cautelas de calcular a diferença entre a alíquota interna do estado de destino e a alíquota interestadual, que pertence ao estado de origem. A diferença entre as alíquotas, que é denominada DIFAL, é bipartida, cabendo uma porcentagem dela ao estado de destino e a outra ao estado de origem — que também receberá a alíquota interestadual em sua integralidade.
O fechamento do comércio físico e a diminuição da frota de ônibus nas cidades brasileiras enxugou a arrecadação do ICMS consideravelmente. Via de consequência, os estados brasileiros sentiram em seus cofres o impacto na queda da arrecadação.
Embora já fosse uma alternativa em vendas, o e-commerce tem se tornado um importante aliado na sobrevivência dos varejistas na quarentena imposta pelos governos, federal, estadual e municipal. Tal tática atraiu a atenção dos estados, que começaram a ver no e-commerce uma oportunidade para intensificar a arrecadação do ICMS, aumentando suas receitas.
Como os estados têm intensificado a arrecadação do ICMS no e-commerce?
Em que pese seja a competência para legislar e arrecadar o ICMS atribuída constitucionalmente aos estados da federação (art. 155, II, CRFB/1988), visando alterar a forma de arrecadação do referido imposto, alguns estados têm editado projetos de lei.
Um exemplo recente é o do Projeto de Lei n. 2.023/2020, aprovado em 31/03/2020 pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e sancionado pelo governador. Ele responsabiliza fintechs e marketplaces pelo pagamento do ICMS devido. O texto ainda possibilita que sejam criadas obrigações tributárias acessórias relativas à emissão de documentos fiscais decorrentes do e-commerce.
Na prática, o lojista/vendedor que não recolher o tributo de uma venda por meio eletrônico ou não preencher os formulários exigidos poderão imputar a responsabilidade do pagamento do ICMS às fintechs e marketplaces, que poderão até ser multados. A lógica, em resumo, é a concentração da responsabilidade tributária nas fintechs e marketplaces para facilitar a arrecadação pelo estado do Rio de Janeiro.
Tal medida poderá obstar o crescimento do comércio eletrônico, que tem sido grande apoio tanto para os pequenos quanto para os grandes comerciantes. Afinal, ele continua escoando os produtos ou serviços para o mercado consumidor, apesar da atual pandemia de Covid-19.
O referido regramento criará uma miríade de dificuldades na operação do comércio eletrônico, além de aumentar o volume de ações judiciais sobre o assunto. A edição indiscriminada de Projetos de Lei pelos estados — a fim de alterar a forma de arrecadação do ICMS no comércio eletrônico — aumentará sobremaneira os custos administrativos das plataformas digitais (marketplaces) e até mesmo das fintechs. E isso onerará a ambos, consumidor e varejista.
Esse aumento freará o fluxo das transações online, que têm sido a salvação do comércio na pandemia. Consequentemente irá desabastecer os consumidores com bens e serviços e prejudicará financeiramente as empresas.
Assim sendo, na tentativa de encher seus cofres, os estados prejudicarão claramente os contribuintes. Esses não terão alternativa, senão onerar os consumidores finais, que, diante da crise financeira em que não só o Brasil, mas o mundo está mergulhado, deixarão de comprar. A roda da economia irá parar de vez, aprofundando a crise e derrubando ainda mais a arrecadação dos impostos estaduais, sobretudo o ICMS.