O direito à privacidade voltou a ser debatido nos círculos jurídicos com a publicação da Lei n. 12.965/2014, mais conhecida como Marco Civil da Internet (MCI). São muitas as disposições do MCI que abordam a privacidade dos usuários da Internet, a tal ponto que o legislador elegeu como princípio da disciplina do uso da internet no Brasil a proteção da privacidade (art. 3º).
Obviamente que o direito à privacidade não foi introduzido em nosso ordenamento pelo Marco Civil da internet. De fato, o direito à privacidade possui raízes muito mais profundas, podendo ser encontradas, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que “Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques” (art. XXII).
A Constituição Federal brasileira previu garantia muito similar no inciso X do artigo 5º, que dispõe “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Baseado em tão sólido fundamento, a legislação infraconstitucional também reverberou o direito à privacidade, como podemos ver no Código Civil, na Lei n. 7.232/1984 (Política Nacional de Informática), na Lei 9.296/96 (Escutas telefônicas), na Lei 12.527/2011 (Lei de acesso à informação), entre muitas outras.
A preocupação legislativa quanto ao tema se deve ao fato de que o direito à privacidade é um dos direitos à personalidade, ou seja, compõe, com outros direitos, o compêndio de direitos mais básicos que toda pessoa humana deveria ter protegidos, preservando dessa forma sua dignidade.
O conceito mais simples de privacidade é talvez o mais preciso: trata-se do direito de estar só. Vem do próprio significado da palavra em latim (privates – separado do resto). Assim, qualquer pessoa tem o direito de permanecer sozinha, admitindo em sua intimidade apenas quem quiser e impedindo terceiros de ingressar nessa esfera pessoal.
O direito à privacidade, segundo estudiosos do Direito, é um direito inato, absoluto, irrenunciável (o titular não pode abrir mão dele), intransmissível e imprescritível (pode ser alegado a qualquer tempo). Esse também é o entendimento do legislador, como foi prescrito no artigo 11 do Código Civil, que dispõe: “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
Ante o que vimos até aqui, já é possível vislumbrar por que o direito à privacidade foi reforçado no Marco Civil: nos tempos modernos, quase nunca uma pessoa consegue se sentir sozinha ao se conectar à Internet. As pistas são inúmeras: ofertas piscando na tela de produtos que foram objeto de busca anterior (remarketing), e-mails não solicitados, histórico dos últimos produtos visualizados em um site de compra etc. É como se do outro lado da tela alguém selecionasse o que você quer e colocasse em locais estratégicos para chamar sua atenção.
Todavia, há aspectos ainda mais importantes quando o assunto é privacidade: nem sempre o usuário sabe o que é feito com os dados que forneceu ao site. Não raro, os dados são repassados a terceiros desconhecidos do usuário para os mais diversos fins. Muitas empresas, inclusive, já sofreram vazamento dessas informações, o que potencializa a violação da privacidade.
O Marco Civil, então, tornou ilegal a utilização de ferramentas de venda que recolham informações do usuário da Internet? A resposta é: depende. Se fôssemos pensar no mundo físico, seria invasão de privacidade, por exemplo, que se contasse quantas pessoas entraram em um estabelecimento ou que permaneceram paradas diante de um determinado produto? Se aprofundarmos a questão, seria invasão se, além de contar as pessoas, se fizesse uma estimativa, ou até mesmo uma entrevista, para saber o perfil de idade, profissão, ou qualquer outro elemento das pessoas no estabelecimento? A nosso ver, desde que tal ação não identifique as pessoas, não há que se falar em invasão de privacidade, mesmo que não haja autorização expressa (apesar de recomendável).
Por outro lado, se as ferramentas recolherem dados que identificam ou poderiam identificar as pessoas, tal ação, que já era irregular levando-se em conta o que se previu na Constituição Federal e no Código Civil, passou a ser condenada também pelo MCI.
Há que se notar, outrossim, que em leitura sistemática da legislação, não poderá ser exigido do usuário que ele abra mão de sua privacidade para fazer uso de um site, aplicativo ou serviço; se ele o fizer de livre e espontânea vontade, tal ação será mera liberalidade, podendo ser revogada a qualquer tempo.
Dessa forma, é altamente recomendável que o usuário das técnicas de marketing digital se adapte à nova legislação, revisando o termo de uso do site, políticas de privacidade, utilização de ferramentas tecnológicas, ou qualquer outra ação que, direta ou indiretamente, implique o tratamento de informações privativas dos usuários da Internet, sejam seus clientes ou não.
Colaborou Ricardo Oliveira, sócio da COTS Advogados e especializado em Direito Digital e e-commerce.